Cadê o braço social do Estado? Por Frei Gilvander Moreira[1]
Na Ocupação Cidade de Deus, em Sete Lagoas, MG, dia 01/8/2021: o sr. Dengo e sua infinita criatividade. Foto: Alenice Baeta.Dia 28 de julho agora (2021), o
Movimento de Luta nos Bairros e Favelas (MLB) e 200 famílias Sem-Casa, das
Ocupações Carolina Maria de Jesus, ameaçadas de despejo, e famílias da Ocupação
Manoel Aleixo, despejadas com a brutalidade da tropa de choque da Polícia
Militar de Minas Gerais, ocuparam um prédio distante poucos metros da Praça da
Liberdade e ao lado do luxuoso Minas Tênis Club, em Belo Horizonte, MG. A
Ocupação foi para denunciar que o Governador de MG vendeu por 20 milhões de
reais o prédio e se nega há quatro anos a cumprir um acordo de assentar
definitivamente as famílias, acordo assinado pelo próprio Governo de MG. Com o
acordo, o MLB saiu de um prédio que tinha ocupado em plena Av. Afonso Pena e
aceitou ir para outro prédio abandonado à Rua Rio de Janeiro até o assentamento
definitivo garantido pelo Governo de MG. Entretanto, quatro anos se passaram, o
Governo de MG parou de pagar o aluguel do prédio cedido no acordo e, pior, não
fez o assentamento definitivo e as famílias estão sob processo de reintegração
de posse do prédio cedido pelo Governo de MG. Cadê o braço social do Governo de
MG que não age há quatro anos para assentar as 200 famílias do MLB? Bastaram dez
minutos após a ocupação do prédio ao lado do Minas Tênis Club para que a tropa
de choque – braço armado do Estado – chegasse e cercasse toda a área impedindo
o acesso de apoiadores e da imprensa, e iniciasse o encurralamento para
precipitar o despejo.
Divulgação / MLB |
Ciente de que a força do Estado está nas
armas, os movimentos sociais populares, muitas vezes, usam a pedagogia do
estilingue: estica o máximo a luta, mas evitando precipitar situações que
possam descambar para massacre. Para os movimentos populares toda vida importa
e muito. Vida não tem preço! Após fazer na luta a denúncia que o Governo de MG está
vendendo mais de dois mil imóveis que poderiam ser utilizados para assentar
milhares das mais de 500 mil famílias sem-casa existentes no estado, o MLB, com
centenas de famílias, saiu do prédio e acampou diante do Palácio da Liberdade,
antiga sede do Governador de MG. Palácio construído no lugar do rancho de dona
Maria Papuda, uma negra oriunda da escravidão, expropriada do seu rancho para que
no local se construísse o Palácio do Governo de MG. Assim, as relações sociais
escravocratas seguem se reproduzindo.
O Acampamento diante do Palácio da
Liberdade durou dois dias e uma noite muito fria. Durante o acampamento vimos
cenas inesquecíveis. Estava ali, de fato, “um
povo sem medo de lutar”. Um dos acampados, que trabalha como vigia,
desabafou que se sentiu discriminado em um processo de seleção para uma vaga de
trabalho, ao ouvir da psicóloga do setor de Recursos Humanos da empresa que ele
“não seria contratado, porque ele não
tinha endereço, era uma pessoa vulnerável”. “Lutaremos sempre para conquistar nossa moradia para que a gente possa
ter uma conta de energia e de água em nosso nome, com endereço claro. Ser
chamado de “vulnerável dói muito”, dizia, com lágrimas nos olhos, aquele
trabalhador, que disse também que foi impedido de usar uma máscara vermelha com
o nome MLB, porque o dono do prédio onde ele era vigia alegou que a máscara era
da cor dos comunistas e que ele estava proibido de usá-la no trabalho. “Trabalhamos muito e muitas vezes somos
proibidos até de expressar a nossa identidade, aquilo que a gente mais gosta”.
Vi várias pessoas passarem em carros luxuosos e gritarem: “Vão trabalhar, vagabundos!” Várias pessoas acampadas naquela noite
fria do final de julho diziam com a voz embargada: “Somos trabalhadores. Trabalhamos muito, mas é impossível com salário
mínimo conseguirmos comprar uma casa por mais humilde que seja. O que ganhamos
só dá para nos alimentar. Dói muito sermos discriminados por outras pessoas.
Não somos vagabundos. Somos a força de trabalho que constrói nosso país. Somos
injustiçados. Nossos direitos são negados cotidianamente”.
Inesquecível também foi ver as lágrimas
brotarem no rosto de várias mães que, com crianças no colo, irradiaram alegria
ao ouvir a militante Poliana, da coordenação do MLB, em Assembleia, dar a
notícia de que, após cinco horas de reunião tensa com o Governo de MG, na Mesa
de Negociação, foi reafirmado que “o MLB
deverá apresentar nesta semana a lista das 200 famílias e que o Estado de MG
reafirmou o compromisso firmado em 2017 que estas famílias serão assentadas”.
Esta notícia fez irradiar alegria imensa nos rostos das centenas de pessoas ali
acampadas. Umas choraram de alegria ao ver que só “com luta e com garra, a casa sai na marra”.
Dia 31 de julho último, fizemos um
mutirão para iniciar a construção de uma Capela de Nossa Senhora da Esperança,
na Ocupação Esperança, na Izidora, em Belo Horizonte. Em oito anos de luta construindo
moradias, impedindo despejo e priorizando a construção da “igreja humana”, uma
comunidade com relações de justiça e solidariedade, tornou-se necessário
construirmos uma igrejinha que seja espaço de cultivo da mística e da
espiritualidade libertadora, com Opção pelos Pobres. Muito bom “pegar no
pesado”: carregar pedra, tijolos, areia, massa e construir a base e as paredes,
em mutirão. As 30 pessoas que ali trabalhavam, estavam todas felizes por
estarem irmanadas construindo uma capelinha. Enquanto trabalhávamos, a prosa e
os casos fluíam. O senhor José, com 64 anos, há 50 anos trabalha construindo
casas e apartamentos, já construiu mais de 150 casas e apartamentos. O Marcos,
pintor há 11 anos, já pintou mais de cem casas e apartamentos. Mesmo tendo
trabalhado a noite inteira como vigia, o Fred veio direto do trabalho para
ajudar no mutirão. Incrível constatar que a classe trabalhadora trabalha muito,
constrói casas e apartamentos para os outros, mas só conquista sua própria
moradia na luta e na garra, fazendo ocupações de terrenos e prédios que não
cumprem sua função social. Somente com o salário mínimo recebido é impossível
se libertar da pesadíssima cruz do aluguel ou da humilhação que é sobreviver de
favor.
Dia 1º de agosto último, passamos grande
parte do dia na Ocupação Cidade de Deus, em Sete Lagoas, MG, onde mais de cem
famílias, quase todas oriundas de situação de rua, estão construindo suas
casinhas e construindo uma comunidade linda, justa e solidária, com Cozinha
Comunitária Fome Zero que, com doações de alimentos, alimenta o povo da
Ocupação e muitas outras pessoas que estão em situação de rua ou sem condições
de garantir a própria alimentação. Como João de Barro, as famílias seguem
construindo suas casinhas de lona preta, de madeirite ou de alvenaria,
plantando hortas nos quintais, cuidando do meio ambiente com arte e uma
criatividade sem fim.
Frei Gilvander na casa do sr. Dengo, na Ocupação Cidade de Deus, em Sete Lagoas, MG, dia 01/8/2021. Foto: Alenice Baeta |
A Ocupação Cidade de Deus se constrói em
um terreno abandonado, que estava ocioso e sem cumprir função social. Durante a
campanha eleitoral, o prefeito de Sete Lagoas foi na Ocupação e prometeu
liberar o terreno para as famílias. Disse que não despejaria as famílias. Assim,
obteve o voto de todas as pessoas eleitoras da Ocupação. Entretanto, após ser
eleito, entrou com pedido de liminar de reintegração de posse. Sete Lagoas tem
mais de 15 mil famílias sem-casa e uma tremenda desigualdade social. O justo e
necessário é não acontecer o despejo. Todo despejo é cruel, violento e
desumano, pois além de demolir casas e lares, desintegra sonhos, histórias, apunhala
as famílias empurrando-as para a morte lenta, um pouco a cada dia. “No final de maio último, com o ultimato da
polícia e o cerco se fechando para o despejo, todo mundo chorou muito aqui na
Ocupação, mas graças a Deus, apareceu o processo de mediação por intermédio do
CEJUSC, do TJMG, e superamos a ameaça de despejo. Não aceitaremos despejo
jamais. Temos necessidade de moradia, o terreno estava abandonado e nós temos
direito de morar dignamente. Basta de sermos violentado pelo braço armado do
Estado. Cadê o braço social do Estado para nos ajudar? ”, interpelam muitas
pessoas da Comunidade Cidade de Deus.
A interpelação feita pelas pessoas da Comunidade Cidade de Deus deve ser a interpelação e a motivação para a luta de todas as pessoas de boa vontade que defendem os direitos fundamentais da pessoa humana, entre eles, o sagrado direito à moradia adequada e digna: “CADÊ O BRAÇO SOCIAL DO ESTADO?”
03/08/2021
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o
assunto tratado acima.
1 - "Na luta pelo bem comum as pessoas se
humanizam." Mutirão de N. Sra da Esperança, em BH - Vídeo 3
2 - “Com luta, com fé e em mutirão” a Igreja de N.
Sra da Esperança, na Izidora, em BH –Vídeo 2 –31/7/21
3 - Mutirão para construção da Capela de N. Sra. da
Esperança, na Ocupação Esperança/BH –31/7/21–Vídeo 1
4 - “Povo organizado vai longe”. “Já conquistei
minha casa, mas estou na luta junto com meus irmãos/ãs"
5 - “Rico come carne do próprio irmão. A gente não é
máquina para ser descartada” (Edneia, MLB) -29/7/21
6 - “Pisa ligeiro, pisa ligeiro. Quem não pode com a
formiga não atice o formigueiro”. MLB, luta p morar
7 - “MLB,
como estrela de Belém, aponta a caminho: moradia só se conquista na luta” (Frei
Gilvander)7/21
8 - Dois dias de luta em BH: Governo de MG terá que
honrar acordo e assentar 200 famílias do MLB–29/7/21
9 - MLB e 200 famílias Sem Casa acampam diante do
Palácio da Liberdade em BH: luta por moradia - 28/7/21
10 - MLB ocupa prédio do Estado, em BH, pela falta
de política habitacional e venda da COHAB - 28/07/21
11 - "Mães e crianças ao relento. Sobreviver de
favor é terrível". MLB acampado diante do Palácio-28/7/21
12 - Marcha das 95 famílias da Ocupação Cidade de
Deus, Sete Lagoas/MG: “DESPEJAR NA PANDEMIA?” – 25/5/21
13 - Plantão das Lutas direto de Sete Lagoas, MG, na
Ocupação Cidade de Deus: “DESPEJO, NÃO!” – 20/5/2021
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo
ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma,
Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof.
de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte,
MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com
– www.gilvander.org.br
– www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira
III
Nenhum comentário:
Postar um comentário